XXVI
A dor
Tudo o que vive neste mundo, natureza, animal, homem, sofre e, todavia, o amor é a lei do universo e por amor foi que Deus formou os seres. Contradição aparentemente horrível, problema angustioso, que perturbou tantos pensadores e os levou à dúvida e ao pessimismo.
O animal está sujeito à luta ardente pela vida. Entre as ervas do prado, as folhas e a ramaria dos bosques, nos ares, no seio das águas, por toda parte desenrolam-se dramas ignorados. Em nossas cidades prossegue sem cessar a hecatombe de pobres animais inofensivos, sacrificados às nossas necessidades ou entregues nos laboratórios ao suplício da vivisseção.
Quanto à humanidade, sua história não é mais que um longo martirológio. Através dos tempos, por cima dos séculos, rola a triste melopéia dos sofrimentos humanos; o lamento dos desgraçados sobe com uma intensidade dilacerante, que tem a regularidade de uma vaga.
A dor segue todos os nossos passos; espreita-nos em todas as voltas do caminho. E diante dessa esfinge que o fita com seu olhar estranho, o homem faz a eterna pergunta: Por que existe a dor?
É, no que lhe concerne, uma punição, uma expiação, como o dizem alguns? É a reparação do passado, o resgate das faltas cometidas?
Fundamentalmente, a dor é uma lei de equilíbrio e educação. Sem dúvida, as falhas do passado recaem sobre nós com todo o seu peso e determinam as condições de nosso destino. O sofrimento, muitas vezes, não é mais do que a repercussão das violações da ordem eterna cometidas; mas, sendo partilha de todos, deve ser considerado como necessidade de ordem geral, como agente de desenvolvimento, condição do progresso. Todos os seres têm de, por sua vez, passar por ele. Sua ação é benfazeja para quem sabe compreendê-lo; mas, somente podem compreendê-lo aqueles que lhe sentiram os poderosos efeitos. Principalmente a esses, a todos aqueles que sofrem, têm sofrido ou são dignos de sofrer que dirijo estas páginas.
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A dor e o prazer são as duas formas extremas da sensação. Para suprimir uma ou outra seria preciso suprimir a sensibilidade. São, pois, inseparáveis, em princípio, e ambos necessários à educação do ser, que, em sua evolução, deve experimentar todas as formas ilimitadas, tanto do prazer como da dor.
A dor física produz sensações; o sofrimento moral produz sentimentos. Mas, como já vimos,(211) no sensório íntimo, sensação e sentimento confundem-se e são uma só e mesma coisa.
O prazer e a dor estão, pois, muito menos nas coisas externas do que em nós mesmos; incumbe, pois, a cada um de nós, regulando suas sensações, disciplinando seus sentimentos, dominar umas e outras e limitar-lhes os efeitos.
Epicteto dizia: “As coisas são apenas o que imaginamos que são.” Assim, pela vontade podemos domar, vencer a dor ou, pelo menos, fazê-la redundar em nosso proveito, fazer dela meio de elevação.
A idéia que fazemos da felicidade e da desgraça, da alegria e da dor, varia ao infinito segundo a evolução individual. A alma pura, boa e sábia não pode ser feliz à maneira da alma vulgar. O que encanta uma deixa a outra indiferente. À medida que se sobe, o aspecto das coisas muda. Como a criança que, crescendo, deixa de lado os brinquedos que a cativaram, a alma que se eleva procura satisfações cada vez mais nobres, graves e profundas. O Espírito que julga com superioridade e considera o fim grandioso da vida achará mais felicidade, mais serena paz num belo pensamento, numa boa obra, num ato de virtude e até na desgraça que purifica, do que em todos os bens materiais e no brilho das glórias terrestres, porque estas o perturbam, corrompem, embriagam ficticiamente.
É muito difícil fazer entender aos homens que o sofrimento é bom. Cada qual quereria refazer e embelezar a vida à sua vontade, adorná-la com todos os deleites, sem pensar que não há bem sem dor, ascensão sem suores e esforços.
A tendência geral consiste em fecharmo-nos no estreito círculo do individualismo, do cada um por si; por essa forma, o homem abate-se, reduz a estreitos limites tudo quanto nele é grande, tudo que está destinado a desenvolver-se, a estender-se, a dilatar-se, a desferir vôo: o pensamento, a consciência, numa palavra, toda a sua alma. Ora, os gozos, os prazeres e a ociosidade estéril não fazem mais do que apertar esses limites, acanhar nossa vida e nosso coração. Para quebrar esse círculo, para que todas as virtudes ocultas se expandam à luz, é necessária a dor. A desgraça e as provações fazem jorrar em nós as fontes de uma vida desconhecida e mais bela. A tristeza e o sofrimento fazem-nos ver, ouvir, sentir mil coisas, delicadas ou fortes, que o homem feliz ou o homem vulgar não podem perceber. Obscurece-se o mundo material; desenha-se outro, vagamente a princípio, mas que cada vez se tornará mais distinto, à medida que as nossas vistas se desprenderem das coisas inferiores e mergulharem no ilimitado.
O gênio não é somente o resultado de trabalhos seculares; é também a apoteose, a coroação de sofrimento. De Homero a Dante, a Camões, a Tasso, a Milton, todos os grandes homens, como eles, têm sofrido. A dor fez-lhes vibrar a alma, inspirou-lhes a nobreza dos sentimentos, a intensidade da emoção que souberam traduzir com os acentos do gênio e que os imortalizou. É na dor que mais sobressaem os cânticos da alma. Quando ela atinge as profundezas do ser, faz de lá saírem os gritos eloqüentes, os poderosos apelos que comovem e arrastam as multidões.
Dá-se o mesmo com todos os heróis, com todos os grandes caracteres, com os corações generosos, com os espíritos mais eminentes. Sua elevação mede-se pela soma dos sofrimentos que passaram. Ante a dor e a morte, a alma do herói e do mártir revela-se em sua beleza comovedora, em sua grandeza trágica, que toca às vezes o sublime e o nimba de uma luz inextinguível.
Suprimi a dor e suprimireis, ao mesmo tempo, o que é mais digno de admiração neste mundo, isto é, a coragem de suportá-la. O mais nobre ensinamento que se pode apresentar aos homens não é a memória daqueles que sofreram e morreram pela verdade e pela justiça? Há coisa mais augusta, mais venerável que seus túmulos? Nada iguala o poder moral que daí provém. As almas que deram tais exemplos avultam aos nossos olhos com os séculos e parecem, de longe, mais imponentes ainda; são outras tantas fontes de força e beleza onde vão retemperar-se as gerações. Através do tempo e do espaço, sua irradiação, como a luz dos astros, estende-se sobre a Terra. Sua morte gerou a vida, e sua lembrança, como aroma sutil, vai lançar em toda parte a semente dos entusiasmos futuros.
É, como nos ensinaram essas almas, pela dedicação e pelo sofrimento dignamente suportados que se sobem os caminhos do Céu. A história do mundo não é outra coisa mais que a sagração do espírito pela dor. Sem ela, não pode haver virtude completa, nem glória imperecível.
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É necessário sofrer para adquirir e conquistar. Os atos de sacrifício aumentam as radiações psíquicas. Há como que uma esteira luminosa que segue, no espaço, os Espíritos dos heróis e dos mártires.
Aqueles que não sofreram mal podem compreender essas coisas, porque neles só a superfície do ser está arroteada, valorizada. Há falta de largueza em seus corações, de efusão em seus sentimentos; seu pensamento abrange horizontes acanhados. São necessários os infortúnios e as angústias para dar à alma seu aveludado, sua beleza moral, para despertar seus sentidos adormecidos. A vida dolorosa é um alambique onde se destilam os seres para mundos melhores. A forma, como o coração, tudo se embeleza por ter sofrido. Há, já nesta vida, um não sei quê de grave e enternecido nos rostos que as lágrimas sulcaram muitas vezes. Tomam uma expressão de beleza austera, uma espécie de majestade que impressiona e seduz.
Michelangelo adotara como norma de proceder os preceitos seguintes: “Concentra-te e faze como o escultor faz à obra que quer aformosear. Tira o supérfluo, aclara o obscuro, difunde a luz por tudo e não largues o cinzel.”
Máxima sublime, que contém o princípio de todo o aperfeiçoamento íntimo. Nossa alma é nossa obra, com efeito, obra capital e fecunda, que sobrepuja em grandeza todas as manifestações parciais da arte, da ciência, do gênio.
Todavia, as dificuldades da execução são correlativas ao esplendor do objetivo e, diante da penosa tarefa da reforma interior, do combate incessante travado com as paixões, com a matéria, quantas vezes o artista não desanima? Quantas vezes não abandona o cinzel? É então que Deus lhe envia um auxílio – a dor! Ela cava ousadamente nas profundezas da consciência aonde o trabalhador hesitante e inábil não podia ou não sabia chegar; desobstrui-lhe os recessos, modela-lhe os contornos; elimina ou destrói o que era inútil ou ruim e, do mármore frio, informe, sem beleza, da estátua feia e grosseira, que nossas mãos mal tinham esboçado, faz surgir com o tempo a estátua viva, a obra-prima incomparável, as formas harmoniosas e suaves da divina Psique.
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A dor não fere somente os culpados. Em nosso mundo, o homem honrado sofre tanto quanto o mau, o que é explicável. Em primeiro lugar, a alma virtuosa é mais sensível por ser mais adiantado o seu grau de evolução; depois, estima muitas vezes e procura a dor, por lhe conhecer todo o valor.
Há dessas almas que só vêm a este mundo para dar o exemplo da grandeza no sofrimento; são, por sua vez, missionários e sua missão não é menos bela e comovedora que a dos grandes reveladores. Encontram-se em todos os tempos e ocupam todos os planos da vida; estão em pé nos cimos resplandecentes da História e para encontrá-las é preciso ir procurá-las no meio da multidão onde se acham, escondidas e humildes.
Admiramos o Cristo, Sócrates, Antígono, Joana d'Arc; mas quantas vítimas obscuras do dever ou do amor caem todos os dias e ficam sepultadas no silêncio e no esquecimento! Entretanto, não são perdidos seus exemplos; eles iluminam toda a vida dos poucos homens que os presenciaram.
Para que uma vida seja completa e fecunda, não é necessário que nela superabundem os grandes atos de sacrifício, nem que a remate uma morte que a sagre aos olhos de todos. Tal existência, aparentemente apagada e triste, indistinta e despercebida, é, na realidade, um esforço contínuo, uma luta de todos os instantes contra a desgraça e o sofrimento. Não somos juízes de tudo o que se passa no recôndito das almas; muitas, por pudor, escondem chagas dolorosas, males cruéis, que as tornariam tão interessantes aos nossos olhos como os mártires mais célebres. Torna também essas almas grandes e heróicas o combate ininterrupto que pelejam contra o destino! Seus triunfos ficam ignorados, mas todos os tesouros de energia, de paixão generosa, de paciência ou amor, que elas acumulam nesse esforço de cada dia, constituir-lhes-ão um capital de força, de beleza moral que pode, no Além, fazê-las iguais às mais nobres figuras da História.
Na oficina augusta onde se forjam as almas não são suficientes o gênio e a glória para fazê-las verdadeiramente formosas. Para dar-lhes o último traço sublime tem sido sempre necessária a dor. Se certas existências se tornaram, de obscuras que eram, tão santas e sagradas como dedicações célebres, é que nelas foi contínuo o sofrimento. Não foi somente uma vez, em tal circunstância ou na hora da morte, que a dor as elevou acima de si mesmas e as apresentou à admiração dos séculos; foi por ter sido toda a sua vida uma imolação constante.
E essa obra de longo aperfeiçoamento, esse lento desfilar das horas dolorosas, essa afinação misteriosa dos seres que se preparam, assim, para as derradeiras ascensões, força a admiração dos próprios Espíritos. É esse espetáculo comovedor que lhes inspira a vontade de renascerem entre nós, a fim de sofrerem e morrerem outra vez por tudo o que é grande, por tudo o que amam e para, com esse novo sacrifício, tornarem mais vivo o próprio brilho.
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Feitas essas considerações de ordem geral, retomemos a questão nos seus elementos primários.
A dor física é, em geral, um aviso da Natureza, que procura preservar-nos dos excessos. Sem ela, abusaríamos de nossos órgãos a ponto de os destruirmos antes do tempo. Quando um mal perigoso se vai insinuando em nós, que aconteceria se não lhe sentíssemos logo os efeitos desagradáveis? Iria cada vez lavrando mais, invadir-nos-ia e secaria em nós as fontes da vida.
Ainda quando, persistindo em desconhecer os avisos repetidos da Natureza, deixamos a doença desenvolver-se em nós, pode ela ser um benefício, se, causada por nossos abusos e vícios, nos ensinar a detestá-los e a corrigir-nos deles. É necessário sofrer para nos conhecermos e conhecermos bem a vida.
Epicteto, que gostamos de citar, dizia também: “É falso dizer-se que a saúde é um bem e a doença um mal. Usar bem da saúde é um bem; usar mal é um mal. De tudo se tira o bem, até da própria morte.”
Às almas fracas a doença ensina a paciência, a sabedoria, o governo de si mesmas. Às almas fortes pode oferecer compensações de ideal, deixando ao Espírito o livre vôo de suas aspirações até ao ponto de esquecer os sofrimentos físicos.
A ação da dor não é menos eficaz para as coletividades do que o é para os indivíduos. Não foi graças a ela que se constituíram os primeiros agrupamentos humanos? Não foi a ameaça das feras, da fome, dos flagelos que obrigou o indivíduo a procurar seu semelhante para se lhe associar? Foi da vida comum, dos sofrimentos comuns, da inteligência e labor comuns que saiu toda a civilização, com suas artes, ciências e indústrias!
A dor física, pode-se também dizer, resulta da desproporção entre nossa fraqueza corporal e a totalidade das forças que nos cercam, forças colossais e fecundas, que são outras tantas manifestações da vida universal. Apenas podemos assimilar ínfima parte delas, mas, atuando sobre nós, elas trabalham por aumentar, por alargar incessantemente a esfera de nossa atividade e a gama de nossas sensações. Sua ação sobre o corpo orgânico repercute na forma fluídica; contribui para enriquecê-la, dilatá-la, torná-la mais impressionável, numa palavra, apta para novos aperfeiçoamentos.
O sofrimento, por sua ação química, tem sempre um resultado útil, mas esse resultado varia infinitamente segundo os indivíduos e seu estado de adiantamento. Apurando o nosso invólucro material, dá mais força ao ser interior, mais facilidade para se desapegar das coisas terrenas. Em outros, mais adiantados no seu grau de evolução, atuará no sentido moral. A dor é como uma asa dada à alma escravizada pela carne para ajudá-la a desprender-se e a elevar-se mais alto.
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O primeiro movimento do homem infeliz é revoltar-se sob os golpes da sorte. Mais tarde, porém, depois de o Espírito ter subido os aclives e quando contempla o escabroso caminho percorrido, o desfiladeiro movediço de suas existências, é com um enternecimento alegre que se lembra das provas, das tribulações com cujo auxílio pôde alcançar o cimo.
Se, nas horas da provação, soubéssemos observar o trabalho interno, a ação misteriosa da dor em nós, em nosso “eu”, em nossa consciência, compreenderíamos melhor sua obra sublime de educação e aperfeiçoamento. Veríamos que ela fere sempre a corda sensível. A mão que dirige o cinzel é a de um artista incomparável, que não se cansa de trabalhar, enquanto não tem arredondado, polido, desbastado as arestas de nosso caráter. Para isso voltará tantas vezes à carga quantas sejam necessárias. E, sob a ação das marteladas repetidas, forçosamente a arrogância e a personalidade excessiva hão de cair nesse indivíduo; a moleza, a apatia e a indiferença desaparecerão em outro; a dureza, a cólera e o furor, num terceiro. Para todos terá processos diferentes, infinitamente variados segundo os indivíduos, mas em todos agirá com eficácia, de modo a provocar ou desenvolver a sensibilidade, a delicadeza, a bondade, a ternura, a fazer sair das dilacerações e das lágrimas alguma qualidade desconhecida que dormia silenciosa no fundo do ser ou então uma nobreza nova, adorno da alma, para sempre adquirida.
Quanto mais a alma se eleva, cresce, se faz bela, tanto mais a dor se espiritualiza e torna sutil. Os maus precisam de numerosas operações como as árvores de muitas flores para produzirem alguns frutos. Porém, quanto mais o ser humano se aperfeiçoa, tanto mais admiráveis se tornam nele os frutos da dor. Às almas gastas, mal desbastadas, tocam os sofrimentos físicos, as dores violentas; às egoístas, às avarentas hão de caber as perdas de fortuna, as negras inquietações, os tormentos do espírito. Depois, aos seres delicados, às mães, às filhas, às esposas, as torturas ocultas, as feridas do coração. Aos nobres pensadores, aos inspiradores, a dor sutil e profunda que faz brotar o grito sublime, o relâmpago do gênio!
Assim, por trás da dor, há alguém invisível que lhe dirige a ação e a regula segundo as necessidades de cada um, com uma arte, uma sabedoria infinitas, trabalhando por aumentar nossa beleza interior nunca acabada, sempre continuada, de luz em luz, de virtude em virtude, até que nos tenhamos convertido em Espíritos celestes.
Por mais admirável que possa parecer à primeira vista, a dor é apenas um meio de que usa o Poder Infinito para nos chamar a si e, ao mesmo tempo, tornar-nos mais rapidamente acessíveis à felicidade espiritual, única duradoura. É, pois, realmente, pelo amor que nos tem, que Deus envia o sofrimento. Fere-nos, corrige-nos como a mãe corrige o filho para educá-lo e melhorá-lo; trabalha incessantemente para tornar dóceis, purificar e embelezar nossas almas, porque elas não podem ser verdadeiras, completamente felizes, senão na medida correspondente às suas perfeições.
Para isso pôs Deus, nesta terra de aprendizagem, ao lado das alegrias raras e fugitivas, dores freqüentes e prolongadas, para nos fazer sentir que o nosso mundo é um lugar de passagem e não o ponto de chegada. Gozos e sofrimentos, prazeres e dores, tudo isso Deus distribuiu na existência como um grande artista que, na tela, combina a sombra e a luz para produzir uma obra-prima.
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O sofrimento nos animais é já um trabalho de evolução para o princípio de vida que existe neles; adquirem, por esse modo, os primeiros rudimentos de consciência; e o mesmo sucede com o ser humano nas suas reencarnações sucessivas. Se, desde as primeiras estadas na Terra, a alma vivesse livre de males, ficaria inerte, passiva, ignorante das coisas profundas e das forças morais que nela jazem.
O alvo a que nos dirigimos está à nossa frente; nosso destino é caminhar para ele sem nos demorarmos no caminho. Ora, as felicidades deste mundo imobilizaram-nos, há atrasos, há esquecimentos; mas quando a demora é excessiva, vem a dor e impele-nos para frente.
Desde que para nós se abre uma fonte de prazeres, por exemplo, na mocidade o amor, o matrimônio, e nos inebriamos no encanto das horas abençoadas, é bem raro que pouco depois não sobrevenha uma circunstância imprevista e o aguilhão faz-se sentir.
À medida que avançamos na vida, as alegrias diminuem e as dores aumentam; o corpo e o fardo da vida tornam-se mais pesados. Quase sempre a existência começa na felicidade e finda na tristeza. O declínio traz, para a maior parte dos homens, o período moroso da velhice com suas lassidões, enfermidades e abandonos. As luzes apagam-se; as simpatias e as consolações retiram-se; os sonhos e as esperanças desvanecem-se; abrem-se, cada vez mais numerosas, as covas em volta de nós. É então que vêm as longas horas de imobilidade, inação, sofrimento; obrigam-nos a refletir, a passar muitas vezes em revista os atos e as lembranças de nossa vida. É uma prova necessária para que a alma, antes de deixar seu invólucro, adquira a madureza, o critério e a clarividência das coisas que serão o remate de sua carreira terrestre. Por isso, quando amaldiçoamos as horas aparentemente estéreis e desoladas da velhice enferma, solitária, desconhecemos um dos maiores benefícios que a Natureza nos proporciona; esquecemos que a velhice dolorosa é o cadinho onde se completam as purificações.
Nesse momento da existência, os raios e as forças que, durante os anos da juventude e da virilidade, dispersávamos para todos os lados em nossa atividade e exuberância, concentram-se, convergem para as profundezas do ser, ativando a consciência e proporcionando ao homem mais sabedoria e juízo. Pouco a pouco vai-se fazendo a harmonia entre os nossos pensamentos e as radiações externas; a melodia íntima afina com a melodia divina.
Há, então, na velhice resignada, mais grandeza e mais serena beleza que no brilho da mocidade e no vigor da idade madura. Sob a ação do tempo, o que há de profundo, de imutável em nós, desprende-se e a fronte dos velhos aureola-se de claridades do Além.
A todos aqueles que perguntam: Para que serve a dor? respondo: Para polir a pedra, esculpir o mármore, fundir o vidro, martelar o ferro. Serve para edificar e ornar o templo magnífico, cheio de raios, de vibrações, de hinos, de perfumes, onde se combinam todas as artes para exprimirem o divino, prepararem a apoteose do pensamento consciente, celebrarem a libertação do Espírito!
E vede qual o resultado obtido! Com o que eram em nós elementos esparsos, materiais informes e, às vezes até, no vicioso e decaído, ruínas e destroços, a dor levantou, construiu no coração do homem um altar esplêndido à beleza moral, à verdade eterna!
A estátua, nas suas formas ideais e perfeitas, está escondida no bloco grosseiro. Quando o homem não tem a energia, o saber e a vontade de continuar a obra, então, dissemos, vem a dor. Ela pega no martelo, no cinzel e, pouco a pouco, a golpes violentos, ou, então, sob o vagaroso e persistente trabalho do buril, a estátua viva desenha-se em seus contornos flexíveis e maravilhosos. Sob o quartzo despedaçado cintila a esmeralda!
Sim, para que a forma se desenvolva em suas linhas puras e delicadas, para que o espírito triunfe da substância, para que o pensamento rebente em ímpetos sublimes e o poeta ache os acentos imortais, o músico os suaves acordes, precisam nossos corações do aguilhão do destino, do luto e das lágrimas, da ingratidão, das traições da amizade e do amor, das angústias e das dilacerações; são precisos os esquifes adorados que descem à terra, a juventude que foge, a gelada velhice que sobe, as decepções, as tristezas amargas que se sucedem. O homem precisa do sofrimento como o fruto da videira precisa do lagar para se lhe extrair o licor precioso!
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Consideremos ainda o problema da dor sob o ponto de vista das sanções penais.
Censuraram a Allan Kardec por ter em suas obras repisado a idéia de castigo e expiação, que suscitou numerosas críticas. Diz-se que ela dá uma falsa noção da ação divina; implica um luxo de punições incompatível com a suprema bondade.
Essa apreciação resulta de um exame muito superficial das obras do grande iniciador. A idéia, a expressão de castigo, excessiva talvez quando ligada a certas passagens insuladas, mal interpretadas em muitos casos, atenua-se e apaga-se quando se estuda a obra inteira.
É principalmente na consciência, bem o sabemos, que está a sanção do bem o do mal. Ela registra minuciosamente todos os nossos atos e, mais cedo ou mais tarde, erige-se em juiz severo para o culpado que, em conseqüência de sua evolução, acaba sempre por lhe ouvir a voz e sofrer as sentenças. Para o Espírito, as lembranças do passado unem-se no espaço ao presente e formam um todo inseparável; vive ele fora da duração, além dos limites do tempo, e sofre tão vivamente pelas faltas há muito cometidas como pelas mais recentes; por isso pede muitas vezes uma reencarnação rápida e dolorosa, que resgatará o passado, conquanto dê tréguas às recordações importunas.
Com a diferença de plano, o sofrimento mudará de aspecto. Na Terra será simultaneamente físico e moral e constituirá um modo de reparação; mergulhará o culpado em suas chamas para purificá-lo; tornará a forjar a alma, deformada pelo mal, na bigorna das provas. Assim, cada um de nós pode ou poderá apagar seu passado, as tristes páginas do princípio da sua história, as faltas graves cometidas quando era apenas Espírito ignorante ou arrebatado. Pelo sofrimento aprendemos a humildade, ao mesmo tempo que a indulgência e a compaixão para com todos os que sucumbem em volta de nós sob o impulso dos instintos inferiores, como tantas vezes nos sucedeu a nós mesmos outrora.
Não é, pois, por vingança que a lei nos pune, mas porque é bom e proveitoso sofrer, pois que o sofrimento nos liberta, dando satisfação à consciência, cujo veredicto ela executa.
Tudo se resgata e repara pela dor. Há, vimos, uma arte profunda nos processos que ela emprega para modelar a alma humana e, quando esta se transvia, reconduzi-la à ordem sublime das coisas.
Tem-se falado muitas vezes de uma pena de talião. Na realidade, a reparação não se apresenta sempre sob a mesma forma que a falta cometida; as condições sociais e a evolução histórica opõem-se a isso. Ao mesmo tempo que os suplícios da Idade Média, têm desaparecido muitos flagelos; todavia, a soma dos sofrimentos humanos apresenta-se, sob as suas formas variadas, inumeráveis, sempre proporcionada à causa que os produz. Debalde se realizam progressos, se estende a civilização, se desenvolvem a higiene e o bem-estar; doenças novas aparecem e o homem é impotente para curá-las. Cumpre reconhecer nisso a manifestação da lei superior de equilíbrio, da qual havemos falado. A dor será necessária enquanto o homem não tiver posto o seu pensamento e os seus atos de acordo com as leis eternas; deixará de se fazer sentir logo que se fizer a harmonia. Todos os nossos males provêm de agirmos num sentido oposto à corrente divina; se tornarmos a entrar nessa corrente, a dor desaparece com as causas que a fizeram nascer.
Por muito tempo ainda a humanidade terrestre, ignorante das leis superiores, inconsciente do futuro e do dever, precisará da dor para estimulá-la na sua via, para transformar o que nela predomina, os instintos primitivos e grosseiros, em sentimentos puros e generosos. Por muito tempo terá o homem de passar pela iniciação amarga para chegar ao conhecimento de si mesmo e do alvo a que deve mirar. Presentemente ele só cogita de aplicar suas faculdades e energias em combater o sofrimento no plano físico, a aumentar o bem-estar e a riqueza, a tornar mais agradáveis as condições da vida material; mas, será em vão. Os sofrimentos poderão variar, deslocar-se, mudar de aspecto; a dor persistirá, enquanto o egoísmo e o interesse regerem as sociedades terrestres, enquanto o pensamento se desviar das coisas profundas, enquanto a flor da alma não tiver desabrochado.
Todas as doutrinas econômicas e sociais serão impotentes para reformar o mundo, para aliviar os males da humanidade, porque assentam em base muito acanhada e porque põem só na vida presente a razão de ser, o fim da existência e de todos os esforços. Para acabar com o mal social é necessário elevar a alma humana à consciência do seu papel, fazer-lhe compreender que sua sorte somente dela depende e que sua felicidade será sempre proporcional à extensão de seus triunfos sobre si mesma e de sua dedicação às outras. Então a questão social será resolvida por meio da substituição do personalismo exclusivo e apertado pelo altruísmo. Os homens sentir-se-ão irmãos e iguais perante a Lei divina, que distribui a cada um os bens e os males necessários à sua evolução, os meios de vencer a si próprio e acelerar sua ascensão. Somente daí em diante a dor verá seu império restringir-se. Fruto da ignorância e da inferioridade, fruto do ódio, da inveja, do egoísmo, de todas as paixões animais que se agitam ainda no fundo do ser humano, desaparecerá com as causas que a produzem, graças a uma educação mais elevada, à realização em nós da beleza moral, da justiça e do amor.
O mal moral existe na alma somente em suas dissonâncias com a harmonia divina. Mas, à medida que ela sobe para uma claridade mais viva, para uma verdade mais ampla, para uma sabedoria mais perfeita, as causas do sofrimento vão-se atenuando, ao mesmo tempo que se dissipam as ambições vãs, os desejos materiais. E de estância em estância, de vida em vida, ela penetra na grande luz e na grande paz onde o mal é desconhecido e onde só reina o bem!
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Muitas vezes ouvimos certas pessoas, cuja existência foi penosa e eriçada de provações, dizerem: “Eu não queria renascer numa vida nova; não quero voltar à Terra.” Quando se sofreu muito, quando se foi violentamente sacudido pelas tempestades do mundo, é muito legítima a aspiração ao descanso. É compreensível que uma alma acabrunhada recue perante o pensamento de tornar a começar essa batalha da vida em que recebeu feridas que ainda sangram. Mas a lei é inexorável. Para subir um pouco na hierarquia dos mundos, é preciso ter deixado neste a embaraçosa bagagem dos gostos e dos apetites que nos prendem à Terra. Muitas vezes levamos conosco esses laços para o Além; e são eles que nos retêm nas baixas regiões. Às vezes julgamo-nos capazes e dignos de chegar às grandes altitudes e, sem o sabermos, mil cadeias acorrentam-nos ainda a este planeta inferior. Não compreendemos o amor em sua essência sublime, nem o sacrifício como é praticado nas humanidades purificadas, em que ninguém vive para si ou para alguns, mas para todos. Ora, só os que estão preparados para tal vida podem possuí-la. Para nos tornarmos dignos dela, será preciso desçamos de novo ao cadinho, à fornalha, onde se fundirão como cera as durezas do nosso coração. E quando tiverem sido rejeitadas, eliminadas as escórias de nossa alma, quando nossa essência estiver livre de liga, então Deus nos chamará para uma vida mais elevada, para uma tarefa mais bela.
Acima de tudo, cumpre aquilatar em seu justo valor os cuidados e as tristezas deste mundo. Para nós são coisas muito cruéis; mas, como tudo isso se amesquinha e apaga, se for observado de longe, se o Espírito, elevando-se acima das miudezas da existência, abarcar com um só olhar as perspectivas de seu destino! Só este sabe pesar e medir as coisas que existem nos dois oceanos do espaço e do tempo: a imensidade e a eternidade, oceanos que o pensamento sonda sem se perturbar!
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Ó vós todos que vos queixais amargamente das decepções, das pequeninas misérias, das tribulações de que está semeada toda a existência e que vos sentis invadidos pelo cansaço e pelo desânimo: se quereis novamente achar a resolução e a coragem perdidas, se quereis aprender a afrontar alegremente a adversidade, a suportar resignados a sorte que vos toca, lançai um olhar atento em torno de vós!
Considerai as dores tantas vezes ignoradas dos pequenos, dos deserdados, os sofrimentos de milhares de seres que são homens como vós; considerai essas aflições sem conta; cegos privados do raio que guia e conforta, paralíticos impotentes, corpos que a existência torceu, imobilizou, quebrou, que padecem de males hereditários! E os que carecem do necessário, sobre quem sopra, glacial, o inverno! Pensai em todas essas vidas tristes, obscuras, miseráveis; comparai vossos males muitas vezes imaginários com as torturas de vossos irmãos de dor, e julgar-vos-eis menos infelizes, ganhareis paciência e coragem e de vosso coração descerá sobre todos os peregrinos da vida, que se arrastam acabrunhados no caminho árido, o sentimento de uma piedade sem limites e de um amor imenso!